População armada: mercado de munições e clubes de tiro dispara em Bh

Em uma realidade na qual o comércio em geral ainda se recupera dos efeitos da pandemia, um setor surfa em uma onda que parece inimaginável para o momento atual da economia: a explosão do mercado de armas e munições, impulsionada por uma série de medidas do governo Jair Bolsonaro (PL). 

Só no ano passado, dados do Exército Brasileiro, obtidos pelo Instituto Sou da Paz via Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram que a venda e munições e cartuchos no Brasil mais que dobrou em relação a 2020: 61,3 milhões contra 28,5 milhões, apenas entre os colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (CACs). PUBLICIDADE

A histórica Casa Salles, localizada em Belo Horizonte e com 140 anos de estrada, estima que 60% do seu faturamento vem hoje justamente deste comércio. 

Administrador do estabelecimento, o empresário Guilherme Salles diz que hoje compra uma quantidade de munições para revenda 147 vezes maior do que antes dos decretos de Bolsonaro. 

“Em um momento de tensão, naturalmente, a procura por arma de fogo aumenta demais. Não são só os CACs. A venda durante a greve dos policiais, provavelmente, será a maior do ano. Tem aumentado, inclusive, a variedade de munições”, afirma. 

De acordo com Guilherme Salles, o setor espera um crescimento das vendas também durante a guerra entre Rússia e Ucrânia. Segundo ele, momentos de tensão geopolítica costumam representar alta no comércio de armas e munições. 

“A venda de munições chegou a 80% (do faturamento da Casa Salles). Por um trabalho meu, até por uma questão de ver o que vai dar lá na frente, eu comecei a trabalhar o marketing dos outros produtos. Hoje, eu já voltei para 60%. Mas, eu tenho um reforço maior de marketing nos outros do que em arma de fogo”, explica o empresário. 

Clubes de tiro em alta

Na mesma toada da Casa Salles, os clubes de tiro de Belo Horizonte viram a demanda por licença de atiradores esportivos disparar nos últimos meses. 

“Vem aumentando num nível bem diferente dos anos anteriores. Mas, com as munições todas registradas. Passa por todos os critérios da Polícia Federal e do Exército”, diz Lucas Greco, do Grupo Protect, que está há 30 anos neste mercado. Segundo ele, a demanda por munições aumentou entre 200 e 300% entre 2020 e o ano passado. 

Clóvis Campos, diretor-técnico do clube de tiro Comandos, localizado na Avenida dos Andradas, Centro de BH, diz que a demanda também disparou em seu estabelecimento. Na avaliação dele, a procura é principalmente para a prática esportiva e exige paciência do interessado para passar pelos processos legais. 

“Leva uma média de seis meses para ele (o cliente) ter uma arma de fogo. As pessoas acham que é só chegar na loja, pagar e levar. É um processo demorado, burocrático, muito fiscalizado e tem que ter a ficha completamente limpa”, afirma. 

É burocrático? 

Para ter uma licença como atirador esportivo, hoje, o cidadão precisa ser credenciado no Exército. Para isso, ele precisa passar pelo teste psicológico feito numa clínica credenciada pela Polícia Federal. 

Após esse passo, é necessário fazer um teste técnico com arma de fogo, que exige um curso com instrutores caso o interessado não saiba atirar e manusear o item. Depois, é obrigatório apresentar certidões negativas da Justiça Eleitoral e comprovar que não responde por processos penais.

Também é preciso informar um local adequado para guarda do acervo a ser comprado e ser filiado a um clube de tiro.

Para se tornar um CAC, a pessoa gasta R$ 100 pelo menos. A licença tem duração de 10 anos. Além de lucrar com a venda de munições, armas e cursos, os clubes de tiro fazem dinheiro com despachantes, que agilizam a aprovação da documentação junto ao Exército e à Polícia Federal. 

Minas Gerais é o quinto estado do Brasil que mais comprou munições entre os CACs no ano passado: 4.994.866. É como se a cada quatro mineiros, um tenha adquirido alguma bala. São Paulo lidera o ranking no País com 10.244.932. Na prática, os colecionadores, atiradores esportivos e caçadores compraram mais cartuchos que as Forças Armadas em 2021.

Crescimento ameaça segurança, garantem especialistas

Especialistas em segurança pública consultados pela reportagem criticam duramente a explosão do mercado de armas e munições. Na avaliação dessas pessoas, mais itens como esses nas ruas representam uma maior possibilidade desses arsenais pararem nas mãos do crime organizado, até pelo grande número de armamento que um colecionador, atirador e caçador (CAC) pode adquirir. 

Para se ter uma ideia, as regras atuais permitem que um desportista compre até 60 armas, 30 de uso permitido e outras 30 restritas. A quantidade de munições pode chegar a 180 mil por ano.

A gerente de projetos do Instituto Sou da Paz Natalia Pollachi diz que não é contra a prática esportiva nos clubes de tiro, mas que é preciso endurecer as regras. 

“Esse setor não precisa de uma desregulamentação tão grande para que ele possa funcionar. Existem formas de regulamentar esse setor que não o impedem de exercer suas atividades. E, ao mesmo tempo, diminui o risco, que é coletivo, para todos nós”, avalia. 

Natalia disse que essa regulamentação passa pelo bom-senso e necessita estabelecer níveis para que o atirador esportivo possa comprar armas de maneira gradual, de acordo com sua participação em competições. 

“Quando a gente fala de uma pessoa que acabou de se registrar como CAC poder comprar 60 armas de fogo de uma vez e 180 mil munições de uma vez. Isso não é uma regulamentação coerente com a nossa realidade de violência armada”, pontua. 

O especialista em segurança pública e professor da Puc Minas, Luis Flávio Sapori, acompanha o raciocínio defendido pelo Instituto Sou da Paz. 

“O que acho mais grave desse processo é que há uma tendência do governo federal e de alguns setores do Congresso, principalmente da bancada da bala, de flexibilizar ainda mais o acesso dos CACs. Estão ‘passando a boiada’”, critica. 

Segundo Sapori, o cenário pode piorar ainda mais caso o Projeto de Lei 3.723/19 passe no Congresso. A proposta estende o porte de armas a outras categorias, como defensores públicos e parlamentares. 

Também reduz o tempo necessário para que os CACs tenham o direito de andar armados nas ruas: de cinco para apenas um ano. 

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